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Eutonia - A pele consciente

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A importância e significado do trabalho sobre a pele para os processos de auto-regulação alcançados na eutonia

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Marcia Bozon. A Pele Consciente. Revista Psique, 2011
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flexibilidade tônica, psicoterapia, pele consciente
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Publicado no site em
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06/05/2016
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Marcia Regina Bozon de Campos

Eutonia é uma palavra de origem greco-latina (do grego Eu- ótimo, harmonioso, e do latim Tônus- tensão), que designa o equilíbrio do tônus, ou seja, a harmonia entre as tensões que coexistem no corpo. Este estado de equilíbrio é atingido quando se consegue manter um nível de tensão mais ou menos equivalente nos diversos a agrupamentos musculares, de forma que não se mantenha nenhuma região com acúmulo de tensão (hipertonia) ou em estado de flacidez (hipotonia). Como resultado obtém-se uma sensação de disposição e de prontidão para a ação, pois o equilíbrio tônico provém da regulação do sistema nervoso neuro-vegetativo, também responsável pela manutenção da respiração, da temperatura do corpo e do estado de alerta (vigília) ou de sono.

A prática da eutonia visa, acima de tudo, o restabelecimento da flexibilidade do tônus geral do organismo. Isso acontece porque no dia a dia é preciso que o tônus muscular dos diferentes tecidos do organismo adapte-se constantemente. Consiste numa série de meios utilizados para se chegar ao estado de tônus equilibrado, sempre dirigindo a atenção do paciente para a percepção dos vários aspectos do seu próprio corpo e da sua relação com o meio externo.

Embora o tônus se refira à atividade muscular, a eutonia não utiliza a atuação direta sobre a musculatura, mais sim sobre os canais de interferência na regulação feita pelo sistema nervoso neuro-vegetativo, como, por exemplo, a consciência dos apoios do corpo no chão ou sobre determinados objetos (bolinhas, bambus, etc.). Isso porque quando a atenção se dirige aos apoios, são ativados os receptores nervosos situados na superfície da pele responsáveis pelo registro de pressão e consequentemente é enviada uma mensagem para o sistema nervoso central de que aquela determinada região para a qual foi dirigida a atenção pode relaxar, pois está sendo sustentada. Dessa forma, o estado de tensão muscular dessa região se altera.

Um dos aspectos mais trabalhados através da prática da eutonia é a consciência da pele, já que esta contém diversos receptores nervosos capazes de captar os estímulos provenientes do ambiente externo, que por sua vez influenciam na regulação do tônus do organismo.

A pele, órgão que recobre toda a superfície do corpo, é também responsável por delimitar a fronteira entre o espaço interno e o espaço externo, de forma que para se ter a percepção do espaço interno do corpo, se faz necessário ter a percepção do envoltório delimitando este espaço. Sentir as distâncias entre os apoios do corpo estendido sobre o solo e traçar linhas imaginárias entre estes apoios e a superfície do corpo que não está apoiada, fornecerá a consciência da tridimensionalidade e do volume do corpo. A noção do volume corporal é dada a partir da imagem dos três eixos, longitudinal, transversal e oblíquo, que implicam respectivamente na altura, largura e diâmetro do corpo. Esta tridimensionalidade, dada tanto pelas impressões táteis (o paciente tocando seu próprio corpo), como pelas sensações vindas da inervação muscular e das vísceras, ou ainda pela percepção da estrutura óssea, traz ao indivíduo a experiência da sua unidade corporal, ou esquema corporal. Segundo Paul Shilder 

 “a noção de esquema corporal é dada pelos sentidos, porém ultrapassa a esfera da simples percepção, porque o córtex cerebral funciona como um armazém de impressões passadas, que se mesclam com as informações transmitidas pelos sentidos, formando seus próprios esquemas, de modo que a percepção da posição ou da localização do corpo no espaço está imbuída de conteúdos anteriores” (SHILDER, 1950).   

A percepção do volume está diretamente relacionada à consciência do espaço interno, que é fundamental para que o indivíduo se relacione com o meio externo e com o outro, sem perder a sensação proprioceptiva e a identificação dos próprios limites.

Outro aspecto trabalhado pela prática da eutonia é a percepção da estrutura óssea, já que por suas características físicas (dureza, resistência, direções definidas), proporciona a sensação mais concreta da existência da unidade corporal em relação ao espaço externo. 

A Eutonia parte do princípio de que todo organismo vivo tem a capacidade nata de auto-regulação, pois durante um único dia vivemos inúmeras situações, sendo que em cada uma delas são produzidas múltiplas alterações fisiológicas em nosso organismo, provocando mudanças no nosso estado geral no que se refere, por exemplo, à nossa disposição ou indisposição para a ação, nosso nível de atenção ou de dispersão, nossa sensação de tensão (nervosismo, ansiedade) ou relaxamento (calma, tranqüilidade), etc. Cada um destes estados possui padrões próprios de funcionamento que são, por sua vez, variáveis e transitórios, dependendo do momento e das circunstâncias, sendo que muitas vezes nosso corpo efetua operações complexas sem tenhamos consciência de como isto está ocorrendo. A Eutonia nos propõe uma prática de atenção aos processos corporais, desde a tomada de consciência das nossas características físicas (peso, volume, forma corporal, presença da pele, da estrutura óssea, etc.), passando pela relação com o ambiente e todos os estímulos dele provenientes, até a atenção sobre os processos subjetivos que acompanham os estados corporais como os sentimentos, os pensamentos e as emoções. Trata-se, portanto de uma abordagem somato-psíquica do ser humano, a qual considera que os processos corporais estão diretamente interligados aos processos mentais, emocionais e psíquicos.

BREVE HISTÓRICO DA EUTONIA
 
Gerda Alexander, nascida em 1908, em Wupertal, Alemanha foi à criadora da eutonia. Em 1929, formou-se em Rítmica e Educação do movimento pela Hochshule fur Musik Berlim, método de educação corporal coordenado por Jaques Dalcroze (1865 1950), considerado um dos expoentes da corrente artístico pedagógica que dará origem ao movimento da dança expressionista na Alemanha. Esta corrente surge no cenário europeu em contraposição à dança acadêmica (clássica) e à ginástica como enfoque nos movimentos mecânicos e repetitivos. Tem como filosofia a exploração criativa dos movimentos naturais do ser humano, levando em consideração tanto o contato deste com o ambiente como o contato com seus sentimentos e emoções. Em 1933, por causa da eminência da segunda guerra mundial, Gerda Alexander passa a viver na Dinamarca e lá dá inícios às pesquisas que resultarão na criação do método da eutonia. Como parte de sua experiência, desenvolveu um trabalho de Educação por meio do movimento em Jardins de Infância com crianças portadoras de todos os tipos de deficiência.

Em 1959, Gerda Alexander apresentou pela primeira vez seu método com o nome de Eutonia no “Congresso Internacional de relaxamento e movimento funcional”, organizado pela Escola de Eutonia Gerda Alexander com o apoio do Ministério da Educação da Dinamarca. 

A eutonia ingressa no cenário dos trabalhos corporais em reação ao entendimento dicotômico entre mente-corpo juntamente com outros métodos e técnicas de práticas corporais como, por exemplo, o Método Feldenkrais (de Moshe Feldenkrais, físico, 1904-1984); Alexander Technique (de F. Mathias Alexander, ator, 1869-1955); e Rolfing (de Ida Rolf, bioquímica, 1896-1979). 

Em 1940, foi fundada em Copenhague, Dinamarca, The Gerda Alexander School, a primeira escola de formação profissional em eutonia. Depois disso a eutonia difundiu-se por vários países da Europa, chegando à América Latina nos anos setenta, primeiramente em Buenos Aires, Argentina e depois no Brasil, trazida por Berta Vishinivetz, eutonista argentina residente na Dinamarca. A primeira turma de eutonistas brasileiros formou-se em 1995. Hoje, existem no Brasil duas escolas de formação profissional em Eutonia reconhecidas pela Associação Brasileira de Eutonia: Instituto Gerda Alexander de Formação em Eutonia e Núcleo Berta Vishnivetz, ambas funcionando em São Paulo. A formação em eutonia tem a duração de três anos e consiste num processo aprofundado, que compreende a prática, a teoria e a pedagogia da eutonia, além de anatomia, fisiologia, biomecânica e noções básicas de psicologia.

APLICAÇÃO DA EUTONIA

A aplicação da eutonia é muito ampla, pois abrange desde a educação para uma melhor qualidade de vida até o tratamento de problemas ortopédicos e psicossomáticos, sendo também utilizada no acompanhamento de gestantes e como promotora de alívio em situações de stress. A eutonia é também muito utilizada por profissionais da área da saúde e da educação como instrumento auxiliar na relação com pacientes ou alunos. O trabalho é desenvolvido através de exercícios específicos de sensibilização, realinhamento ósseo, toques, manipulações, para que a pessoa possa ampliar a sua experiência sensorial e cognitiva, sem que lhe seja imposta nenhuma sensação ou elaboração da percepção que possam gerar conclusões prédeterminadas. A consciência permanente.

A EUTONIA COMO INSTRUMENTO AUXILIAR NOS PROCESSOS PSICOTERAPEUTICOS

“Todas as experiências são tanto físicas quanto não físicas. As idéias acompanham e enriquecem as funções corporais e estas acompanham e realizam a ideação”
Winnicott, 1957.

Esta frase de Winnicott nos leva a refletir sobre os processos de interação psíquica e somática no paciente sujeito de um processo psicoterápico. A partir daí surgem algumas questões:

Se as funções corporais acompanham e realizam as ideações, então o corpo do paciente tem uma participação ativa no processo psicoterápico, entendendo-se que o sujeito deste processo é um psicossoma;

A unidade psicossomática se constituiu a partir destas experiências, simultaneamente físicas e não físicas, de modo  que experiências predominantemente somáticas podem ser um instrumento auxiliar no processo terapêutico, pois certas vivências relacionadas ao próprio corpo tem a capacidade de  provocar sensações que reportam a vivências primárias, fazendo com que os conteúdos internos não elaborados possam emergir para serem trabalhados verbalmente.

Esta idéia se refere à possibilidade de que o paciente seja conduzido a vivenciar a percepção do seu próprio corpo, reportando-se a sensações de conforto e bem estar provenientes do contato consigo mesmo, como, por exemplo, a percepção do seu espaço interno; da superfície da sua pele exercendo a função de continente e ao mesmo tempo de receptora dos estímulos ambientais; da relação do corpo com o espaço externo no qual está contido e com o qual se relaciona a partir do estabelecimento de uma interface. Nesta percepção está diretamente implicada a sensação de presença da pele como um envelope narcísico, que contém o que é percebido pelo indivíduo como sendo “si mesmo” e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem estar de base. Esta idéia está contida no conceito de “Eu – pele”, designado por Didier Anzieu como sendo uma representação de que se serve a criança durante fases precoces do seu desenvolvimento, para representar a si mesma como um Eu que contém os conteúdos psíquicos a partir da sua experiência da superfície do corpo (ANZIEU, 1985). É a partir desta possibilidade que o Eu psíquico se diferencia do Eu corporal no plano operativo e permanece confundido com ele no âmbito do simbólico. Isto implica na possibilidade de conduzir o paciente a dirigir sua atenção para toda a estimulação sensorial que seu corpo recebe naquele determinado momento, estimulações estas provenientes do contato do corpo com o ambiente (tecidos que envolvem o corpo, temperatura do ar, consistência da superfície de apoio, sons, luminosidade, etc.) e do próprio corpo (sensação de disposição, cansaço, peso, leveza, ritmo respiratório, imagens mentais, etc.), reduzindo neste determinado momento a utilização da sua capacidade de pensar, de raciocinar, de associar ou de imaginar, deixando-se estar somente presente, contido pelo ambiente como quando sua existência se resumia na percepção do que se passava no seu corpo, nos estágios primitivos do seu desenvolvimento anteriores à aquisição da linguagem. 

Esta intenção se fundamenta na idéia de que os processos mentais são processos físicos, de maneira que a estimulação sensorial pode provocar sensações intrinsecamente conectadas a representações mentais ou a conteúdos inconscientes.

Minha proposta é auxiliar o paciente a perceber-se na sua fisicidade, sendo que esta percepção remete a “um estar dentro de algo, um viver este algo” (FERRARI, 1995) considerando-se que a percepção do próprio corpo nunca poderá tornar-se completamente representação, pois a corporeidade a partir da qual a sensação provém e de onde se originam as representações, sempre se fará presente. Este exercício de atenção tem como intenção intensificar esta experiência, na medida em que favorece o voltar a consciência para a percepção sensorial. O ritmo da voz ao guiar a atenção do paciente para os diversos aspectos da sua sensorialidade, as pausas para que o paciente possa realmente sentir e perceber minuciosamente os estímulos internos provenientes do seu corpo e do seu contato com o ambiente cria uma base para a posterior elaboração de conteúdos internos que estavam fora do campo de alcance da consciência.

A formação em eutonia não habilita o profissional a conduzir um processo psicoterapêutico, portanto, salvo os casos em que o eutonista possui a formação em psicologia, este processo deve ser conduzido por profissionais distintos, um eutonista e um psicólogo, podendo ainda contar com a presença de um psiquiatra ou neurologista caso se faça necessário. A experiência clínica tem demonstrado que a abordagem transdiciplinar incluindo a eutonia é eficaz em inúmeros casos, trazendo alívio aos pacientes portadores de dor crônica, fibromialgia, síndromes miofasciais e pacientes diagnosticados com desordens psicossamáticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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